domingo, 22 de maio de 2011

O anjo e o gato (Thereza Christina Motta)

Para Pat Lau

Que anjo desce sobre a porta
e ausculta quieto o nosso sono?
Anjo de asas brancas, alvíssimas
como um manto.
As flores nos teus cabelos
emolduram teu rosto.
E todas as coisas têm sua ordem
desordenada.
Um pequeno caos de coisas.
Depois o gato, a observar, pacífico,
o anjo que passa.

9h26 - 14/2/2011

Um gato preto ainda cedo me faz pensar (Ricardo Alfaya)

Não creio que um gato
Por mais preto que seja
Por mais vidas que tenha
Poderá entender a minha dor
Mesmo que me olhe com o brilho
De seus olhos de vidro
Que balance lentamente o rabo
Quebrando o silêncio com um miado fino
Não há nada que esse bichano possa fazer por mim
Não há nada
Apenas a macia cor de sua pele me fará lembrar
Logo anoitecerei sozinho

Gato ao crepúsculo (Millôr Fernandes)

Poeminha de louvor ao pior inimigo do cão
 
Gato manso, branco,
Vadia pela casa,
Sensual, silencioso, sem função.
Gato raro, amarelado,
Feroz se o irritam,
Suficiente na caça à alimentação.
Gato preto, pressago,
Surgindo inesperado
Das esquinas da superstição.
Cai o sol sobre o mar.
E nas sombras de mais uma noite,
Enquanto no céu os aviões
Acendem experimentalmente suas luzes verde-vermelho-verde,
Terminam as diferenças raciais.
Da janela da tarde olho os banhistas tardos
Enquanto, junto ao muro do quintal,
Os gatos todos vão ficando pardos.
 

Lições de um gato siamês (Ferreira Gullar)

Só agora sei
que existe a eternidade:
é a duração
       finita
       da minha precariedade  
O tempo fora
 de mim
            é relativo
 mas não o tempo vivo:
 esse é eterno
 porque afetivo
 — dura eternamente
   enquanto vivo
 E como não vivo
 além do que vivo
 não é
 tempo relativo:
 dura em si mesmo
 eterno (e transitivo)


                                       

Dar nome aos gatos (T.S. Eliot)

O nome dos gatos é um assunto matreiro.
     E não passatempo para entreter parentes:
Podem me achar doido igual a um chapeleiro.
     Mas um Gato tem TRÊS NOMES DIFERENTES.
O primeiro é o nome que a família mais usa.
     Como Pedro, Augusto, Estêvão, Oliveiros.
Como Vítor, Jorge, ou Jonas ou Fiúza...
     Mas nomes nomes que são no entanto corriqueiros.
Outros há pomposos, que parecem mais chiques
     Sejam para as damas ou para os cavalheiros:
Como Electra, Egeu, Inês, Afonso Henriques...
     Mas nomes que são no fundo corriqueiros.
Ora afirmo: um gato apenas se completa
     Com um nome que seja peculiar e distinto;
Como iria então manter a cauda ereta,
     Erguer os bigodes e acalentar o instinto?
Dos nomes da espécie, a lista é pequenina:
     Como Munkustrap, Quaxó, Coricopato,
E Ágata talvez, talvez Bombalurina...
     Nome que se aplica apenas a um só gato.
Mas acima e além, um nome se exorciza,
     Esse que jamais nos viria à cabeça,
Procurando em vão pela humana pesquisa...
     Só O GATO SABE, mas a ninguém confessa.
Se vires um gato em profundo mutismo,
     Saibas a razão que o tempo lhe consome:
Sua mente paira a divagar no abismo
     E ele pensa, e pensa, e pena no seu nome:
             No inefável afável
             Inefanifável
Fundo e inescrutável sentido de seu Nome.

        (Tradução de Ivo Barroso)

O Gato (Donizete Galvão)

O gato é secreto.
Tece com calma o mistério do mundo. O gato é elétrico.
Pura energia a percorrer a espinha.
O gato é orgulho.
Sem humildade, jamais se entrega.
O gato é desejo.
Atração pela lua e telhados.
O gato é sagrado.
Olho no olho que brilha.
Um susto.
Parece que vemos Deus.

         in "Azul Navalha", Edições Excelsior, 1988, SP

 

Poema para os gatos (Artur da Távola)

Silêncio,
eis a tarefa
de todos os gatos.
Poucos sabem perscrutar
(talvez ninguém em plenitude)
o grau de solidão necessária
ao saber auto suficiente
para ser felino e doméstico
em sua tarefa de monge
guardião do inextricável
em quem o homem não percebe
a metafísica natural,
recolhimento
saber
sensualidade
e aceitação.

sábado, 21 de maio de 2011

Ter gatos (Ramon Mello)

Não é preciso ter gatos
para conhecê-los.


Arte-manhas de um gasto gato (Ana Cristina Cesar)


Não sei desenhar gato.
Não sei escrever o gato.
Não sei gatografia
nem a linguagem felina das suas artimanhas.
Nem as artimanhas felinas da sua não-linguagem.


Olhos de gato (Thereza Christina Motta)

Revisar poemas
é aprofundar-se no texto,
como se o enxergasse,
com olhos de gato,
o raio-x do poema.

14/05/2011 - 22h


O novelo de lã (Beatriz Motta)

O gatinho brinca
com o novelo de lã:
enrola, desenrola,
enrosca, desenrosca.

Com o novelo, o gatinho
faz um caminho que vai dar
em nenhum lugar.

Beatriz S. Motta Rollemberg, aos 8 anos de idade

Siameses (Thereza Christina Motta)



Estaremos próximos
de uma realidade estéril,
viveremos juntos
irmãos siameses,
nunca dito do que se permite,
esta voz, esta luz,
faca sagrada, língua afiada,
nada diz,
só a nódoa,
a fome transparente
que à noite vem
nos buscar.


19/05/2011 - 21h

Só meu gato (Thereza Christina Motta)


Para Ramon Mello

Minha placidez
não é revolta
não é inconformar-me
porque não sou.
Minha antiguidade
é outra
diferente de mim
e não se extingue
porque não sou.
Esta sou eu
que sou outra
diferente de mim
e de coisa nenhuma.
Só meu gato
me escuta
e me espera
voltar.


19/05/2011 - 21h


O Gato (Vinicius de Moraes)

Com um lindo salto
Lesto e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pega corre
Bem de mansinho
Atrás de um pobre
De um passarinho
Súbito, pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga


O Gato (Fernando Pessoa)

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.


Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.



O Gato (Pablo Neruda)

Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gato, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos do seu gato.



Ode ao Gato (José Jorge Letria)


Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.

José Jorge Letria, in "Animália Odes aos Bichos"