O gato que passa
miando o choro de um bebê
me olha e me vê
como se eu fosse meu antepassado
lembrado em sua memória genética.
Nossos legados vão comandando
meus impulsos humanos
e seus passos brandos.
Seus olhos atentos
pelas madrugadas vão trepando
telhados e gatas
pelo instinto das garras.
Eu me sento e assisto,
pela TV ou internet,
a passagem dos séculos
com todos nossos vícios,
expondo-nos às miradas e feitiços
dos gatos e outros bichos.
Enquanto eu me debruço
no espírito do pássaro
fugindo à gula dos gatos,
a terra se rebela
contra a pacatez da espera.
Por dentro um grito
sai quebrando as pedras.
O vulcão vomita, o mar se agita,
o morro desfaz-se sobre as casas do bairro,
enterrando homens e mulheres
em seus abraços de orgasmos
de olhos fechados
como se não houvesse entorno.
E o que fica me desatina,
querendo rever a porção antiga
sem mais briga.
Agora que a força do braço torto
tornou-se no corpo morto
todos se perguntam a hora
em que a bomba estoura...
O gato espia
com ironia
toda utopia...
"Razão distópica", de Gerson Valle, in “Utopias na contramão”, Ibis Libris, 2018
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